Nos EUA, homeschooling é realizado com 2,5 milhões de crianças, no Brasil apenas 15 mil; metodologia é questionada por especialistas
Segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), cerca de 1,5 bilhão de crianças e jovens tiveram as aulas paralisadas devido a pandemia do novo coronavírus. Isso significa que 80% do total de estudantes do mundo estão sem aulas presenciais. No Brasil, o cenário se repete, com as escolas fechadas, os pais são encarregados de cuidar da educação dos filhos em casa. Devido a essas circunstâncias, a educação domiciliar e sua regulamentação voltam a ser um assunto debatido no país.
A educação domiciliar (ou homeschooling) é uma modalidade de ensino em que os pais, ou tutores, exercem também a função de professores, e passam todos os conteúdos e ensinamentos que o estudante receberia em uma escola, dentro a sua própria casa. Atualmente, a prática é permitida ou regimentada em mais de 60 países. No Brasil ela não é regulamentada, mas tramita no Congresso um projeto de lei, já assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em abril de 2019, que muda esse cenário e visa criar regras para a prática.
O Brasil ocupa a 58ª posição no ranking internacional de liberdade educacional da Oidel - Organização sem fins lucrativos com sede em Genebra, na Suíça. A liberdade educacional é um dos pontos defendidos pelos adeptos da educação domiciliar, segundo eles, os países onde essa prática é regulamentada são os mais bem colocados em rankings, como o da Oidel.
Além dessa, há outras motivações para que as famílias optem pela modalidade. Uma pesquisa realizada em 2016 pela Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar) com famílias homeschooling revelou que 32% delas fizeram a opção pelo ensino em casa “em busca de uma educação mais personalizada para os filhos, explorando seus potenciais e talentos”.
Nos Estados Unidos, o ensino fora da escola é praticado por cerca de 2,5 milhões de crianças. Vale lembrar que, diferentemente do Brasil, cada estado dos EUA possui sua autonomia, ou seja, cada um possui regras e leis diferentes. A administradora Glaucia Linguanotto, mora em Phoenix, no Arizona, com seus dois filhos e nunca praticou o ensino domiciliar, mas conta que a modalidade já faz parte da cultura dos americanos. “Aqui é muito normal, você sempre encontra adultos que foram homeschooled, então quer dizer que aqui acontece faz um bom tempo”
Para Glaucia, as leis do homeschool no Arizona são relativamente simples e têm resultados positivos, mas ela deixa evidente que não praticaria com os filhos Nicolas (15) e Laura (5). “Eu prefiro que eles frequentem a escola, pois acho a parte socialização tão importante quanto as matérias que eles aprendem lá. Nessa quarentena, percebo ainda mais o quanto os amigos da escola fazem falta para os dois”.
Dados da Aned ainda revelam que 15 mil estudantes entre quatro e 17 anos, de 7,5 mil famílias, estão envolvidos na educação domiciliar em todas as unidades federativas do Brasil. O estudante Davi Coscarelli Ciríaco (19), mineiro e criado no Amazonas, conta que foi homeschooled até o Ensino Fundamental. Essa opção foi tomada por seus pais pela dificuldade do filho de frequentar uma escola, por conta do envolvimento dos dois com uma ONG voltada para crianças indígenas.
Como a modalidade não é regulamentada no país, os pais de Davi faziam acordos com as escolas locais, como é comum nos Estados Unidos. “Eu tinha que estar matriculado em alguma escola. Meus pais faziam acordos com as instituições para elas não considerarem minhas faltas, e esporadicamente eu ia para a escola fazer algumas provas”.
Para Davi, a modalidade é válida e não causa nenhum prejuízo no aprendizado. “Sou exemplo disso. Por conta do meu desenvolvimento acadêmico, há dois anos fui convidado para estudar em uma das melhores escolas do país (Florida Institute of Technology)”. Ele também passou em diversas universidades internacionais e irá começar o curso em uma nos Estados Unidos ainda esse ano, “se o coronavírus não atrapalhar”, brinca.
O OUTRO LADO
A pedagoga e mestre em educação com ênfase em política educacional, Juliana Bicalho, discorda da prática porque, segundo ela, a escola não existe somente para compartilhar o conteúdo curricular. "A socialização que ali acontece entre os diversos envolvidos no processo educativo, tem um papel importantíssimo no desenvolvimento dos sujeitos e na consequente formação de suas personalidades."
O cenário atual causado pela pandemia do novo coronavírus aprofundou o quadro de desigualdade educacional entre os alunos de classes sociais altas e aqueles que vivem em condições mais desfavoráveis. Juliana articula que nem todo brasileiro tem condições financeiras de ir ao teatro, ter um computador, ou de comprar um livro para ler e socializar com diferentes pessoas que possuem distintos traços culturais oriundo de classe social, religião ou gênero. “A escola, é uma forma de tentarmos equalizar, ainda que com muitas dificuldades, o hiato que existe entre as frações de classe, do acesso ao capital cultural.”
Dados do estudo compilados do Pisa 2018 e levantados por meio de um questionário on-line enviado a escolas, redes e entidades de educação de 98 países entre março e abril, ajudam a entender melhor a realidade brasileira e evidenciam o peso das diferenças sociais.
Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), somente 9% dos estudantes não tem um lugar tranquilo para estudar em casa. No Brasil, o número gira em torno de 15% entre os mais favorecidos e de 40% entre os menos privilegiados. Em países como Dinamarca, Islândia e Holanda, mais de 95% dos alunos têm um computador para estudar em casa. No Brasil, 90% dos mais privilegiados têm um aparelho. Entre os mais pobres, só 30%.
Para Juliana, a prática da homeschooling é, antes de tudo, uma banalização da profissão docente. Estudos revelam que o tempo que um aluno permanece em sala de aula é um dos preditores mais confiáveis de oportunidades de aprendizagem. Juliana concorda e assente que “por mais que os seus pais possuam notório saber, eles não são professores. Logo, não possuem formação específica adequada para exercer este ofício”.
A pedagoga conclui seu pensamento afirmando que se o Brasil adotar a prática da educação domiciliar seria reproduzido, ainda mais, diferentes desigualdades e preconceitos na sociedade brasileira. Isso anularia a possibilidade de superar os mesmos através da socialização e imersão em diferentes culturas com a vivência nos espaços escolares. “A escola não busca somente a construção do ‘pensamento’, mas também a sua desconstrução.”
Alícia Fim, Ana Maria Ribeiro, Beatriz Siqueira, Bruna Cezario, Bruno Palamin, Gabriel Otoboni, Giovanna Cardoso e Matheus Dias
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